terça-feira, 18 de março de 2008

Um piercing na liberdade


Algo que à primeira vista poderá parecer compreensível e geralmente aceite, pode esconder uma face oculta, ainda que esta se imponha sub-repticiamente.


Foi entregue um projecto-lei na Assembleia da República que visa preencher o vazio normativo sobre o sector que compreende a aplicação de piercings, tatuagens e maquilhagem permanente. O projecto em questão contempla, entre outras coisas, os dispositivos descartáveis, as declarações de consentimento, a proibição de aplicação de tatuagens e piercings a menores de 18 anos (mesmo com a autorização dos pais, o pai Estado não permite) e as multas que devem ser imputadas aos transgressores; ou seja, a regulamentação referente às particularidades decorrentes da natureza do acto em si (cuja forma tende a ser consensual e objectiva); bem como as especificidades que decorrem do enquadramento no sistema jurídico em que esta se encontra.

O projecto prevê também a obrigatoriedade da formação dos profissionais das tatuagens e piercings. Eis algo bom… porém os moldes sobre os quais assenta esta formação ainda estão por definir. Eis algo mau… podemos definir algo como obrigatório sem identificar a forma pela qual isso poderá ser cumprido? Podemos… Será coerente fazê-lo? Nem por isso. Não estou a tentar insinuar que isso não será feito… eventualmente. Não obstante, parece-me importante que aquando da entrega e\ou aprovação de um projecto ou proposta de lei, este esteja completo, pelo menos no que respeita a funcionalidade do mesmo. Infelizmente o legislador não parece concordar com esta visão, pois parece persistir um padrão de “decidimos agora, pensamos sobre isso depois”, isto a julgar pelas recentes leis relativas ao fumo e à droga na estrada, cujas implicações não me parecem pertinentes aqui, pois estas variam caso a caso.

Este tipo de incompletude legislativa acarreta o perigo da levianização da lei, da sua falta de clareza e pior ainda, desencadeia o sentimento de insegurança do cidadão perante a lei e em última instância perante o Estado (realidades estas que tendem a confundir-se quando vistas a olho nu). Como se não bastasse, aparenta existir uma tentativa mais ou menos consciente de fazer passar estes pormenores por trás de uma capa de legitimidade apoiada no senso comum social. Um qualquer cliché que justifique a necessidade da trapalhada. Na minha opinião, algumas “orientações” na saúde e na educação caberiam na forma e substância desta “atitude legislativa”, mas isso é um post completamente diferente.

Penso que ninguém (ou quase ninguém), discorda da implementação de normas referentes a este e demais sectores. A necessidade de regulamentação, neste caso, advém (entre outras coisas) da necessidade de “protecção preventiva” contra os possíveis abusos que poderão ter lugar na relação cliente – consumidor ou com implicação na relação individuo – sociedade (quando pomos a saúde pública ao barulho), que provoca uma cedência do tipo, individuo – lei. Não nos esqueçamos que este estado de sujeição, esta cedência de direitos, tem como base o princípio da legitimidade. De modo a que não tenhamos que percorrer os meandros desta problemática, admitamos que aqui a legitimidade resultaria do bem-estar social \ individual, entendido como a regulamentação de algo que pode provocar dano, tanto ao indivíduo como aos que o rodeiam; bem como a inserção destes actos no espectro social e jurídico.

É difícil (quase impossível) estabelecer a barreira que defina o espaço do eu e o espaço público do eu. Mesmo assim neste caso em concreto, esta parece ter sido transposta. O projecto proíbe a colocação de acessórios na língua e na boca, assim como “na proximidade de vasos sanguíneos, de nervos e de músculos", o que inclui os órgãos genitais. Ora bem, aqui já estamos a definir onde é e não é permitido por os piercings, o que se trata de uma ruptura na barreira do eu, ou se preferirem, uma intromissão na esfera de liberdade individual. Assim, embora partilhe da preocupação implícita a este ponto, refuto a legitimidade da norma enquanto imposição indevida, pois o seu “raio de acção” estende-se para além do que seria admissível.

De acordo com o bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas, Orlando Monteiro
da Silva, "os piercings linguares são frequentemente causadores de hemorragias, inchaço da língua e fracturas nos dentes, além dos habituais riscos de contágio de doenças". Parece-me ser seguro admitir que os mesmos riscos se apresentem quando se trata dos órgãos genitais ou outras áreas mais vulneráveis. Será este um facto que justifica tal imposição? De modo algum. Este facto implica sim a obrigatoriedade da disponibilização de informação relativa a estes perigos, a quem se propõe fazer um piercing ou uma tatuagem. Uma outra circunstância que decorre deste facto é a importância de uma formação dos profissionais das tatuagens e piercings adequada e que inclua formas de actuação perante tais problemas. Aquela que ficou com os moldes por definir…

Compreendo que seja mais fácil proibir, do que acautelar cuidadosamente os interesses sem ferir as liberdades individuais, pois isso dá muito mais trabalho. É estudos, é falar com especialistas, é considerar isto e aquilo… muito trabalho. Nada que estejamos à espera de alguém, cuja actividade representativa assim o impõe, pelo menos em principio… No entanto esse é um jogo perigoso. Neste sentido, quando é que começamos a deixar que o Estado nos proteja de nós mesmos, impondo um deficit da liberdade? E quem decidirá como e contra quê deveremos ser protegidos? Que visões estarão em jogo? Da maioria? Das elites sociais e políticas? Poço sem fundo isso sim… Parece um salto muito grande, porém a distância é mais esbatida do que parecerá á primeira vista.

Deixo à consideração um excerto de um e-mail que me enviaram (2019):
“- Telefonista: Pizza Hot, boa noite! - Cliente: Boa noite, quero encomendar Pizzas... - Telefonista: Pode-me dar o seu NIN? - Cliente: Sim, o meu Número de Identificação Nacional é o 6102 1993 8456 5463 2107 (…)- Cliente: (…) Quero encomendar duas Pizzas: uma Quatro Queijos e outra Calabresa... - Telefonista: Talvez não seja boa ideia... - Cliente: O quê...? - Telefonista: Consta na sua ficha médica que o senhor sofre de hipertensão e tem a taxa de colesterol muito alta. Além disso, o seu seguro de vida proíbe categoricamente escolhas perigosas para a saúde.”

A questão da intromissão do espaço do eu, leva na prática a que os indivíduos se refugiem nas alternativas que se lhes apresentem num dado momento, em virtude de uma qualquer circunstância. Neste caso especifico aquilo a que apelidaremos de regulamentação desmesurada, traduzir-se-á ou no seu incumprimento ou na viabilização do “mercado negro” dos piercings e tatuagens, como alternativa. Sublinha-se o desregramento deste tipo de “arranjos” e os perigos que daí advêm.
E nestas coisas da saúde pública, mais vale promover a prevenção do que arriscar causas mais ou menos previsíveis.

Há ainda que considerar os problemas inerentes à não aplicabilidade de algo disposto na lei. Convenhamos que não será viável pensar que se deixem de fazer piercings na língua ou afins… muito menos viável será esperar por uma fiscalização eficaz, de modo a garantir o cumprimento. Estes são alguns dos factores que contribuem para a levianização da lei, reflectindo efeitos pouco saudáveis para o bem-estar da justiça, do processo legislativo e porque não… da relação Cidadão – Estado de Direito.

1 comentário:

Anónimo disse...

Esta lei em minha opinião é perfeitamente dispensável visto o país estar a enfrentar problemas graves a outros níveis, sendo sim, necessário outro tipo de intervenções a nível polico visto este ter outro tipo de precariedades.Sendo então necessário, não uma "demosntração de preocupação" para com os jovens menores de 18 anos, que eventualmente possam fazer tatuagens, piercing.. mas outro tipo de cuidados politicos com a sociedade, que eventualmente possam ser proveitosos e benéficos para esta.