segunda-feira, 7 de julho de 2008

Casamento


Ressurgiu a questão quando Manuela Ferreira Leite em entrevista a Constança Cunha e Sá, afirmou: “Pronuncio-me, sim, sobre o tentar atribuir o mesmo estatuto àquilo que é uma relação de duas pessoas do mesmo sexo igualmente ao estatuto de pessoas de sexo diferente”.
Isto cai-me mal confesso. A discriminação nunca foi flor do meu jardim, seja ela negativa ou positiva, no entanto, nunca vi com maus olhos a discriminação enquanto escolha pessoal. Considero legitimo que alguém discrimine outras raças ou determinados comportamentos dentro daquela que é a sua esfera de liberdade; ou seja, alguém que se considera racista e/ou homofóbico tem todo o direito a não convidar um casal homossexual para sua casa, a recusar-se a falar com pessoas de outras raças ou a não comer na mesma mesa que um individuo de outra raça [desde que se levante e vá embora]. Algo completamente diferente, é quando esse alguém ultrapassa a sua esfera de liberdade e atropela aqueles que são os limites fronteiriços do raio de acção de outrem. Supúnhamos que esse alguém acima descrito, ao invés de se levantar da mesa e ir embora, decide-se por expulsar ou enxovalhar essa pessoa de outra raça. Aqui a agressão vai mais além, pois estamos a falar de um não reconhecimento dos direitos de outro ser humano. Falo em reconhecimento e não em não existência, pois quer sejam reconhecidos ou não os seus direitos, essa pessoa tem-nos enquanto individuo.

Imaginemos que esse nosso alguém racista e/ou homofóbico é funcionário público, e ao atender um rapaz que entrou de mão dada com o seu namorado, para além de encaixar uma ou duas bocas, não proporciona o nível de serviço que seria esperado numa outra situação. Poderia-me ficar pelo facto de que nesta situação, o nosso alguém está claramente a atribuir novas directivas ao desempenho da sua função, dado que assim, está a se incumbir de um poder discricionário sobre o exercício da sua função, que não possui nem poderá vir a possuir. Acontece que caso esse poder discricionário fosse legítimo, estaríamos a permitir que cada funcionário saísse da sua esfera de liberdade, servindo cada um como uma espécie de identidade reguladora, que funcionaria mediante as convicções individuais. Ora de acordo com essa ordem de ideias, caso o funcionário público fosse eu, e esse alguém entrasse de mãos dadas com o seu racismo [isto é possível], podem crer que o serviço prestado seria sem sombra de dúvidas de fraca qualidade, só não encaixaria as tais bocas, porque sou uma pessoa educada. Acontece que isto seria profundamente errado, pois eu estaria a impor sobre outrem aquelas que são as minhas convicções, fazendo-as repercutir sobre os direitos desse indivíduo.

Quando falamos de legislação o problema é em tudo semelhante, com o agravante de que falamos agora de algo que tem uma abrangência muito maior, logo, o cuidado deve ser redobrado. Ao longo da história a lei tem sido [em muitos casos] usada para impor aquela que é a vontade de uma consciência colectiva, regulando os termos efectivos do contracto social, na tentativa de manter conformes os padrões de comportamento, com o objectivo implícito de manutenção dessa mesma vontade. Essa consciência colectiva é influenciada pelos grupos que se criam numa sociedade, e estes por sua vez influenciados pelos indivíduos que integram esses grupos. Podemos considerar que a vontade de um grupo, é a vontade da maior parte dos indivíduos que o constituem, por conseguinte, a vontade da maioria dos grupos [ou vontade de um grupo que seja em si uma maioria], tornar-se-á a vontade da consciência colectiva. Podemos estar mais certos dessa relação quando essa “vontade colectiva” incentiva o processo legislativo que, pela sua natureza, condicionam o agir dos indivíduos; para além do condicionamento, podemos também assistir a uma fidelização e/ou incorporação da vontade que estimulou a criação desses mesmo regulamentos.

È exactamente no que toca ao condicionamento da vontade alheia, que tem de haver um esforço para sair do campo pessoal das convicções, de tal maneira que se consiga visionar o mínimo de interferência sobre o comportamento de outrem. Até porque convicções há muitas e comportamentos mais ainda, agora as certezas… essas são escassas. Enquanto humanos somos obrigados a concordar que a diversidade sempre foi uma característica presente na nossa espécie, característica essa que enriquece a nossa existência enquanto seres. Mais importante ainda é saber reconhecer as nossas próprias limitações, no que concerne à capacidade de entendimento. È ao absorver esses factores que devemos garantir uma margem de manobra [dentro da esfera de liberdade de cada um] propiciadora dessa liberdade, que garante a diversidade e estimula a coesão em torno de algo que ultrapassa as nossas convicções, ou seja, em torno do valor da humanidade no seu todo.


Daí que tenha alguns problemas com a frase: “Pronuncio-me, sim, sobre o tentar atribuir o mesmo estatuto àquilo que é uma relação de duas pessoas do mesmo sexo igualmente ao estatuto de pessoas de sexo diferente.” Não haveria problema algum, caso Manuela Ferreira Leite se pronuncia-se sobre aquilo que são as suas convicções, sem com isto querer dizer, que impediria a atribuição do estatuto de casados [casamento civil] a casais do mesmo sexo. O que está de errado nesta acepção [a meu ver] é que Manuela [um individuo] não considera o casamento homossexual, como passível de ser beneficiado pelo estatuto do casamento, assim sendo, está disposta a condicionar outros indivíduos que não partilham dessas mesmas convicções. Em nome de quê? Valores? Que tipo de valores são esses, quando servem para limitar outrem, sem que essa limitação sirva para impedir a libertinagem do individuo em causa? Se fossemos a nos regular meramente por valores dos outros, conseguem imaginar a quantidade de coisas que cada um de nós seria impedido de fazer? Qual o verdadeiro valor de um valor quando a sua aplicação não visa o beneficio de todos e a salvaguarda dos direitos de cada um? Sempre considerei que o estatuto, quando nos referimos a relações humanas, nunca é atribuído de fora para dentro. Quem consegue contestar que um casal homossexual atribui-se a si mesmo o estatuto de casados e de família, independentemente da opinião de seja lá quem for?

È no reconhecimento externo desse estatuto que a coisa muda de figura. Se um casal de sexos diferentes tem direito ao estatuto de casados, para além de meras convicções pessoais e redutoras daquilo que significa o casamento, que outras razões haverão para impedir que casais do mesmo sexo partilhem desse estatuto? Afastando-me agora das liberdades e direitos, pergunto-me, o que é o casamento? Será a união de duas pessoas de sexos diferentes? Ou será a união de dois indivíduos? Encontrei no Corta fitas um post [A coragem de Manuela] publicado por João Távora, que fala sobre este assunto. Lá dizia que, “o casamento civil vem sendo progressivamente esvaziado dos seus frágeis fundamentos (…) Transformado num precário acto burocrático e muitas vezes pretexto para burlescos regabofes à moda de Las Vegas, decadentes exibições de intemperança, a admissão de pares do mesmo sexo na mesma caldeirada será a prazo a machadada fatal na instituição.” A instituição casamento está de facto mais frágil do que foi noutros tempos. Se bem que podemos a todo o momento contestar sob que condições, a instituição casamento se mantinha forte. Parece-me ser natural que numa sociedade mais livre, uma instituição como o casamento, perca algo da sua consistência, pois assim, estamos a lidar com uma resposta emocional e racional mais forte, por parte dos indivíduos que compõem essa mesma relação.


Se formos acompanhar o rácio dos divórcios, a taxa de divórcios era em 1975 de 0,2 por cada mil habitantes, em 1981 já ascendia a 0,7, em 1991 já alcançava os 1,4 e em 2001 o indicador estava no 1,8. Serão estes números tão assustadores ao ponto de anunciarmos a “machadada fatal na instituição?”. Nem por sombras, digo eu. Os moldes sob os quais enquadramos o casamento estão a mudar sem dúvida, porém, isso não é nem de longe nem de perto o fim prematuro do casamento. Antes pelo contrário, esta trata-se da renovação do casamento, que tal como noção de família, está-se a adaptar a uma nova sociedade. Nunca nos podemos esquecer que a evolução [positiva para uns, negativa para outros, como sempre foi] é um processo contínuo sujeito às condições sociais, não a moralismos e convicções sobre os temas. Quanto aos “regabofes à moda de Las Vegas”, concordo que sejam o extremo de uma situação que se quer mais sóbria, porém penso que estamos bem longe desses regabofes. Agora, juntar “a admissão de pares do mesmo sexo na mesma caldeirada” é que será o exagero.


Volto à pergunta, o que é o casamento? Qual é a diferença entre um casamento homossexual e um casamento hetero? Será o amor? Não existe ninguém que possa afirmar sem qualquer sombra de dúvida, que uma mulher é incapaz de amar outra mulher com tanta intensidade como seria capaz de amar um homem. Serão os homossexuais capazes de respeito pela outra pessoa ou de querer passar o resto da vida com outro(a)? Quem acha que isto é mesmo uma pergunta, nem merece resposta. Será a capacidade de funcionar como uma família? A realidade mostra que família é mais do que mãe, pai e filhos. Penso já ter respondido a esta questão neste post. Então o que será? Foi no blog Cachimbo de Margerite, que encontrei um post [A questão do casamento], publicado por Nuno Lobo. Lá lê-se, “Hoje em dia, quando ouvimos alguém designar o casamento como a união familiar entre um homem e uma mulher, com vista à procriação, sentimos que estamos perante um discurso sem credibilidade…” Ahhh! A procriação… Por muito que se evite, a procriação consegue-se através do sexo. O casamento não deixa de ser um feliz efeito secundário decorrente da necessidade de um ambiente seguro para a prol [a família], que ultrapassou o seu propósito inicial.

Caracterizar o casamento como uma união familiar, com vista à procriação é despir esta instituição do seu verdadeiro significado; a união entre dois seres humanos, com vista nada mais do que a união em si. Para quê descaracterizar o casamento, atribuindo-lhe uma função? No referido post lê-se: “ (…) o Legislador não pode deixar de discriminar claramente entre a união entre homens e mulheres, já que é nelas que se verifica a complementaridade dos sexos e a totalidade da espécie, por um lado, e a união entre dois homens ou duas mulheres, onde nem os sexos se complementam nem a totalidade da espécie se manifesta.” A complementaridade dos sexos é um facto natural que não é único à nossa espécie. A não ser que a preocupação seja que os seres humanos se deixem de reproduzir [o que me parece altamente improvável], não vejo particular interesse em discriminar as uniões entre seres do mesmo sexo. A racionalidade sim, é única à nossa espécie, e é nesta que encontramos a totalidade da espécie. È esse o elemento que nos permite ultrapassar a barreira natural, dado que deixamos de estar sujeitos à maior parte dos condicionalismos que nos rodeiam. Considerando que a racionalidade é em si um elemento natural, não nos falta senão admitir que aquilo que surge a partir desta é também natural. Assim sendo, a escolha racional de um parceiro do mesmo sexo, com base em emoções [que são em si naturais], conferem às uniões homossexuais toda a “naturalidade” necessária.

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